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Mulheres podem ser ciborgues? GĂȘnero, Feminismo e InteligĂȘncia Artificial

  • Foto do escritor: Nicholas Kluge
    Nicholas Kluge
  • 1 de dez. de 2021
  • 15 min de leitura

Atualizado: 2 de dez. de 2021




Doutora em Filosofia pela PontifĂ­cia Universidade CatĂłlica do Rio Grande do Sul


A relação entre gĂȘnero e conhecimento tem sido um dos principais tĂłpicos de debate do movimento feminista. Mais especificamente, a demanda pelo acesso justo e igual de mulheres Ă  educação e a possibilidade da produção do conhecimento, data jĂĄ dos primeiros textos considerados “feministas”. Em “Uma reivindicação dos Direitos das Mulheres” (1791), Wollstonecraft afirma que “os direitos pelos quais as mulheres, juntamente com os homens, devem lutar, [...] sĂŁo a consequĂȘncia natural de sua educação e sua posição na sociedade”. A busca pelo rompimento do aprisionamento de mulheres no espaço privado e domĂ©stico, permaneceu base do pensamento feminista - seja pela inclusĂŁo na educação e nos processos democrĂĄticos da primeira onda, pela inseção no mercado de trabalho e da autonomia sobre si da segunda onda, seja pela igualdade de oportunidades de diferentes mulheres em situaçÔes particulares Ă  esfera pĂșblica pela terceira onda do movimento. Apesar dos inĂșmeros ‘telhados de vidro’ que o movimento rompeu, nĂłs, mulheres, ainda permanecemos Ă  margem de diversos espaços de conhecimento, como nos corpos docentes da academia, nos altos cargos em empresas privadas, nas lideranças de governos, e mesmo, em campos que ainda permanecem vistos como masculinos: como os das ciĂȘncias e da tecnologia.


A paridade de participação de indivĂ­duos mulheres, nĂŁo-brancos, LGBTQ+ e outros grupos marginalizados nos campos do saber Ă©, sem dĂșvidas, um requisito para alcançarmos algum modelo de sociedade justa e verdadeiramente democrĂĄtica. Ainda, que esses grupos encontram nesses espaços um lugar de resistĂȘncia e desconforto em função de estruturas heteronormativas, misĂłginas e racistas, que alienam esses sujeitos dessas atividades, jĂĄ sĂŁo bastante reivindicados.


A provocação da pergunta “Podem as mulheres serem ciborgues?”, contudo, vai alĂ©m da questĂŁo do acesso igualitĂĄrio de mulheres no campo do desenvolvimento de tecnologias e de inteligĂȘncia artificial - busca investigar se questĂ”es de gĂȘnero trazem implicaçÔes para o conteĂșdo do conhecimento em si, isto Ă©, como percepçÔes de distinçÔes de gĂȘnero afetam o conteĂșdo universal e transcendente do conhecimento objetivo, especialmente, em sistemas de inteligĂȘncia artificial parecem tornar obsoletas definiçÔes de sexo e gĂȘnero.


Epistemologia feminista: uma crĂ­tica a razĂŁo universal descorporificada


Em “The Man of Reason” (1985), Genevieve Lloyd aponta para o caráter masculino

que noçÔes de racionalidade e conhecimento escondem por detrĂĄs das pressuposiçÔes de universalidade e objetividade no decorrer da histĂłria do pensamento filosĂłfico. Segundo a autora, “nossa crença de que a razĂŁo nĂŁo. conhece nenhum sexo tem, argumento, em grande medida, enganado a si mesma”, pois a separação de formas do conhecimento daquela ‘racional’, da ‘passional’, permitiu a exclusĂŁo ou hierarquização do conteĂșdo dos saberes, o que, em função das distinçÔes de gĂȘnero que estrutuam a sociedade, produzem “nĂŁo apenas razĂ”es prĂĄticas, mas tambĂ©m conceituais, para os conflitos que muitas mulheres experienciam entre RazĂŁo e feminilidade” (LLOYD, 1985, p. 10). Ao encontro dessa perspectiva, Alison Jaggar, em “Love and knowledge: Emotion in feminist epistemology” (1989), esclarece o aprisionamento das noçÔes de conhecimento aos modelos dicotĂŽmicos, que retiram a experiĂȘncia sensĂ­vel da possibilidade de informar um saber objetivo, contribuĂ­ram para a valorização de certos conceitos de conhecimentos:


“Normalmente, embora nĂŁo invariavelmente, o racional foi contrastado com o emocional, e este par contrastado, entĂŁo, muitas vezes ligado a outras dicotomias. NĂŁo sĂł a razĂŁo foi contrastada com a emoção, mas tambĂ©m tambĂ©m foi associado ao mental, ao cultural, ao universal, ao pĂșblico e o masculino, enquanto a emoção tem sido associada ao irracional, o fĂ­sico, o natural, o particular, o privado e, claro, o feminino" (JAGGAR, 1989, p. 151).


O campo da epistemologia feminista tem se debruçado recentemente em enfrentar o problema do gĂȘnero frente Ă  objetividade do conhecimento. Para diversos indivĂ­duos que estĂŁo Ă  margem da produção da ciĂȘncia, tecnologia e do conhecimento, pensĂĄ-lo enquanto desinteressado, imparcial e sem julgamento de valor, parece confrontar a experiĂȘncia destes com a histĂłria da ciĂȘncia moderna.


Sandra Harding na obra “Whose science? whose knowledge?: thinking from women's lives” (1986), articula trĂȘs importantes e distintos programas epistemolĂłgicos feministas:

  • Filosofia feminista empiricista - que busca corrigir a “mĂĄ ciĂȘncia”;

  • Ponto de perspectiva feminista - que contrĂłi o conhecimento a partir da experiĂȘncia particular de mulheres;

  • Feminismo pĂłs-moderno - que suspeita dos comprometimentos com o projeto iluminista das ciĂȘncias e epistemologias (HARDING, 1986, p. 11).

Esses programas epistemológico trazem, de diferentes maneiras, questionamentos e contribuição para uma espécie de método feminista, uma investigação que se comprometa com uma anålisecrítica da objetividade que revele os padrÔes masculinos dos métodos padrÔes do conhecimento. Segundo Harding (1986, p. 41):


“Uma maneira de ver esse problema Ă© perceber que, embora os mĂ©todos cientĂ­ficos sejam selecionados, dizem, exatamente para eliminar todos os valores sociais da investigação, eles sĂŁo realmente operacionalizados para eliminar apenas aqueles valores que diferem dentro do que quer que seja considerado pela comunidade de cientistas. Se valores e interesses que podem produzir mais crĂ­ticas perspectivas sobre a ciĂȘncia sĂŁo silenciadas por meio de açÔes sociais e prĂĄticas discriminatĂłrias, o padrĂŁo, concebido estreitamente como mĂ©todo cientĂ­fico, nĂŁo terĂĄ a menor chance de maximizar a neutralidade de valor ou objetividade”.


A tensĂŁo expostapelas crĂ­ticas da epistemologia feminista, tanto aos cientistas sociais quanto das ciĂȘncias naturais, foi aquela da relação entre poder e conhecimento. Diversas crĂ­ticas se debruçaram em expor que o mĂ©todo cientĂ­fico universal, de fato, investigava e debatia problemas relativos apenas a experiĂȘncia masculina, que as narrativas cientĂ­ficas serviam aos interesses dos homens brancos, e que toda a ordem simbĂłlica por meio da qual o conhecimento Ă© reivindicado foram articulados privilegiando o masculino e conceituando o feminino apenas como aquilo que carecia de masculinidade. A crĂ­tica Ă  objetividade, aquele conhecimento do mundo como ele Ă©, independente do sujeito conhecedor, buscou demonstrar que tal conhecimento carrega, inevitavelmente, traços da subjetividade nos mĂ©todos tidos como universais.


Muitas destas metodologias feministas tĂȘm apontado para o fator situado do conhecimento. Uma visĂŁo epistemolĂłgica situada, como defendem diversas autoras, nĂŁo representa um necessĂĄrio relativismo, mas propĂ”e enquanto ponto de partida metodolĂłgico que objetividade e subjetividade nĂŁo sĂŁo duas oposiçÔes numa investigação cientĂ­fica, mas podem ser construĂ­das de maneira dialĂ©tica (ver FIUMARA, LAZREG, 1994). Ou seja, que objetividade e subjetividade estĂŁo em um constante processo de formação.


Em “Saberes localizados: a questĂŁo da ciĂȘncia para o feminismo e o privilĂ©gio da perspectiva parcial” (1995), Donna Haraway defende que “a alternativa para o relativismo sĂŁo saberes parciais,localizĂĄveis, crĂ­ticos, apoiados na possibilidade de redes de conexĂ”es, chamadas de solidariedade em polĂ­tica e de conversas compartilhadas em epistemologia” (HARAWAY, 1995, p. 24), assim, o conhecimento situado nĂŁo estĂĄ num lugar fixo de oposição aquele totalitĂĄrio, universal; mas, estĂĄ de fato, em uma “prĂĄtica da objetividade que privilegie a contestação, a desconstrução, as conexĂ”es em rede e a esperança na transformação dos sistemas de conhecimento”, que possam conhecer o mundo de forma menos organizadas a partir de eixos de dominação de saberes. A proposta de Haraway Ă© de uma visĂŁo diferente da objetividade, e aqui, digo ‘visĂŁo’ em razĂŁo do enfoque dado pela autora ao fator corpĂłreo sensorial da visĂŁo para nos colocar no mundo, nĂŁo de maneira estritamente passiva frente ao objeto do conhecimento, mas como “sistemas de percepçÔes ativos, construindo traduçÔes e modos especĂ­ficos de ver” (HARAWAY, 1995, p. 22). A visĂŁo, enfoca Haraway, depende daquilo que podemos ver, de sistemas de percepçÔes que produzem significados no mundo, do posicionar-se enquanto um olho que vĂȘ, traduz, descrever reproduz. Com isso, aquilo que se quer descartar Ă© a produção totalitĂĄria do conhecimento, este que disfarça sua posição masculina, no universal e inteiro, em detrimento de uma visĂŁo do:


“[...] eu cognoscente [que] Ă© parcial em todas suas formas, nunca acabado, completo, dado ou original; Ă© sempre construĂ­do e alinhavado de maneira imperfeita e, portanto, capaz de juntar-se a outro, de ver junto sem pretender ser outro. Eis aqui a promessa de objetividade: um conhecedor cientĂ­fico nĂŁo procura a posição de identidade com o objeto,mas de objetividade, isto Ă©, de conexĂŁo parcial” (HARAWAY, 1995,p. 26).


Uma crĂ­tica da objetividade, contudo, nĂŁo implica que coloquemos o bebĂȘ fora com a ĂĄgua do banho - como bem destaca Marnia Lazreg em “Women’s experience and feminist epistemology” (1994), uma questĂŁo que permanece interessante para a crĂ­tica da ciĂȘncia descorporificada, aquela que nĂŁo permite que uma experiĂȘncia possa ser considerada uma forma de conhecimento, Ă© se toda experiĂȘncia Ă© vĂĄlida da mesma forma como conhecimento, ou seja, se um ‘mĂ©todo cientĂ­fico feminista’ contĂ©m ou precisa conter critĂ©rios cientĂ­ficos bem definidos de anĂĄlise. Como bem coloca Haraway, o relativismo recai no mesmo problema geral do objetivismo, um “truque de Deus”: enquanto objetivismo Ă© um conhecimento de lugar nenhum (transcendente), o relativismo promete ser um conhecimento de todos os lugares ao mesmo tempo e igualmente (onipresente). O conhecimento precisa ser visto como parcial e situado, nĂŁo relativo, em processo de emergĂȘncia.


Afinal, uma visĂŁo epistemolĂłgica da experiĂȘncia das mulheres precisa tambĂ©m nĂŁo cair nas armadilhas essencialistas que o feminismo busca criticar, isto Ă©, nĂŁo pode ser tomada como um local situado fixo e total, jĂĄ que, como temos visto nos debates recentes, especialmente apĂłs a terceira onda do movimento feminista, a categoria ‘mulher’ enquanto uma posição especĂ­fica do saber ignora a multiplicidade e variedade de experiĂȘncias e intersecçÔes da vivĂȘncia humana, que perpassam por questĂ”es alĂ©m do gĂȘnero, como raça, etnia, nacionalidade e sexualidade, por exemplo. A conclusĂŁo de Lazreg destaca que a:


“A escolha nĂŁo Ă© entre ciĂȘncia e experiĂȘncia, objetividade e subjetividade. O ponto Ă© perceber que a objetividade Ă© uma meta cada vez menor e se esforçar para alcançå-la Ă© um processo histĂłrico sem fim” (LAZREG, 1994, p. 59).


A investigação cientĂ­fica comprometida com a crĂ­tica feminista parece apontar para insuficiencia dos modelos majoritĂĄrios que estabelecem critĂ©rios de racionalidade e objetividade enquantro uma visĂŁo situada em lugar nenhum, mas capaz de ver o obejto de pesquisa de maneira total. Essa pretensĂŁo de universalidade implicou nos mais diversos campos, das ciĂȘncias sociais, naturais e exatas, o obscurecimento de um padrĂŁo que favorece uma visĂŁo masculina de mundo. Com isso, temos um reconhecimento recente de que o conhecimento Ă© situado num mundo estruturado por configuraçÔes de gĂȘneros, afinal,os cientistas que veem, traduzem representam a realidade do mundo, sĂŁo situados nestes locais generificados.


Um ponto de intersecção entre gĂȘnero, robĂłtica e inteligĂȘncia artificial para o debate do conhecimento nas ciĂȘncias e tecnologias emerge na medida em que esses sistemas parecem estar livres dos limites de gĂȘneros e, logo, de seus desdobramentos no resultado das formas de conhecimento. Mais ainda, podemos pensar em que sentido essas tecnologias tendem a influenciar nossos conceitos atuais de diferenças sexuais e de gĂȘnero?


GĂȘneros e InteligĂȘncia Artificial


A descrição feita por Lloyd em "The man of reason” (1985) aponta para a busca, que perpassa a histĂłria da filosofia, por uma espĂ©cie de conhecimento e razĂŁo mais pura, livre de qualquer influĂȘncia das paixĂ”es e corporeidade humana. Em certo sentido, podemos ver os sistemas de inteligĂȘncia artificial como a forma onde essa razĂŁo pura alcança sua maior potencialidade. A pergunta que surge, ao nos comprometermos com uma metodologia feminista de epistemologia como descrita Ă©, afinal, podem existir vieses de gĂȘnero no campo da InteligĂȘncia Artificial?


Em um primeiro momento, a narrativa desses sistemas descorporificados que nĂŁo podem ser classificados como feminino/ masculino, macho/fĂȘmea, homem/ mulher, parecem trazer esperança para uma espĂ©cie de conhecimento que ultrapasse os limites destas dicotomias iluministas.


Certamente, como Ă© reivindicado por mulheres nos campos das ciĂȘncias, tecnologias e desenvolvimento de InteligĂȘncia Artificial, a falta de paridade de participação de mulheres, assim como de outras categorias sociais marginalizadas, implicam que muitos dos sistemas desenvolvidos buscam responder demandas estritamente masculinas, alienando os problemas de outros sujeitos do campo tecnolĂłgico. Isso nĂŁo implica, ao menos nĂŁo necessariamente, que a InteligĂȘncia Artificial, assim como aquela da objetividade que Lloyd chamou de ‘razĂŁo do homem’, possa esconder na pretensĂŁo de neutralidade, um conhecimento masculino.


Os debates tecno-feministas iniciados no anos 90, iniciados por Judy Wajcman, enfatizam que “tecnologias dominadas por homens conspiram para diminuir a relevĂąncia das tecnologias ‘das mulheres’, como horticultura, cozinhar e o cuidado”. Ferrando em “Is the post-human a post-woman? Cyborgs,robots, artificial intelligence and the futures of gender: a case study” (2014) analisa que as redes de conexĂ”es histĂłricas que contextualizam e situam a concepção do ‘humano’, tambĂ©m formam uma histĂłria e situam o entendimento do que constitui esses sistemas tecnolĂłgicos, como o de um ciborgue, por exemplo.


Ainda, Susan Leavy, em “Gender Bias in Artificial Intelligence: The Need for Diversityand Gender Theory in Machine Learning” (2018), argumentou que vieses de gĂȘnero podem ser identificadas nos modelos de IA, principalmente, pela influĂȘncia que a linguagem, impregnada por dicotomias de gĂȘneros, apresentam na construção dos algoritmos e do aprendizado desses maquinĂĄrios. Para Leavy, “a mĂĄquina aprende principalmente observando os dados com os quais Ă© apresentada [...] embora a capacidade de uma mĂĄquina de processar grandes volumes de dados possa resolver isso em parte, se os dados estiverem carregados de conceitos estereotipados de gĂȘnero, a aplicação resultante da tecnologia perpetuar esses vieses” (p. 14).


Ao menos desde a dĂ©cada de 70, feministas investigam o papel da linguagem nas dinĂąmicas de gĂȘnero, como bem aponta Leavy, “as ideologias de gĂȘnero ainda estĂŁo incorporados nas fontes textuais e resultam em algoritmos de aprendizados de mĂĄquina que apresentam conceitos estereotipados de gĂȘnero”. A utilização dos termos “homens” e “mulheres”, por exemplo, sĂŁo associados com funçÔes, representaçÔes e nomeaçÔes distintas: algoritmos demonstram o uso recorrente do termo “homem de famĂ­lia”, nĂŁo havendo um equivalente para mulher, ao mesmo tempo, em que termos como “mĂŁe solteira”, “mĂŁe trabalhadora” e “mulher de carreira”, servem para descrever preconcepçÔes sobre o papel social de mulheres; ainda, a designação masculina sendo utilizada como universal, ensina os algoritmos perceberem certas funçÔes como atribuĂ­das aos homens. TambĂ©m, os termos descritivos associados a homens e mulheres sofrem grande variação,o termo ‘menina’ Ă© usado mais de metade das vezes para referir-se Ă  mulheres, enquanto menos de 30% do uso de ‘meninos’ Ă© atribuĂ­do a homens; o termo ‘esposa’ Ă© muito mais utilizado do que o termo ‘marido/ esposo’.


Num outro exemplo,em 2013, a ONU Mulheres em associação com agĂȘncias publicitĂĄrias divulgaram os algoritmos de pesquisas relacionadas Ă s mulheres na ferramenta de busca do Google, a fim de mostrar o que Ă© exibido quando se busca no Google sobre as mulheres.Quando digitado “as mulheres nĂŁo podem”, os recursos de preenchimento automĂĄtico sugerem “nĂŁo podem dirigir”, “nĂŁo podem ser confiĂĄveis”, “nĂŁo podem ser pastoras”; ou ainda, quando buscado “as mulheres devem” as pesquisas autocompletam com “devem ficar em casa”, “devem estar na cozinha”, “devem ser submissas”, etc. Em 2016 a Google confirmou a remoção de sugestĂ”es relacionadas aos termos do seu sistema, ao digitar mulher ou mulheres, hoje, nĂŁo hĂĄ sugestĂ”es. Contudo, o desafio permanece: na medida em que o algoritmo que gera tais conteĂșdos, continua a reproduzir preconceitos dos mais diversos. O recurso de ‘autocompletar’ tenta ‘prever’ os pensamentos dos usuĂĄrios a partir dos dados gerados pelos algoritmos. Como resultado, o autopreenchimento poderia, de fato, influenciar uma busca que o usuĂĄrio nem sequer teve a intenção inicial de realizar. Diversas autoras apontam para a forma como esses sistemas perpetuam os estereĂłtipos de gĂȘnero.


Neste sentido, em “Constructions of gender in the history of Artificial Intelligence” (1996), Alison Adam apresenta tambĂ©m uma discussĂŁo de como as ideias podem ser generificadas e produzidas no campo da IA para associar-se com noçÔes do masculino e do feminino. Adam afirma que os modelos de raciocĂ­nio e de inteligĂȘncia do campo da IA envolvem essencialmente problemas epistemolĂłgicos de duas ordens: quem Ă© o conhecedor ideal; e, em termos do que se pode conhecer (ADAM, 1996, p.48). A pressuposição geral da epistemologia de que “S sabe que P” enquanto a Ășnica forma de conhecimento adequado, assume que todo conhecimento precisa ser proposicional, nĂŁo sendo, nĂŁo pode se tratar de um conhecimento, o que exclui da campos dos saberes as habilidades prĂĄticas e de know-how. Para Adam, o campo simbĂłlico de conhecimento da InteligĂȘncia Artificial permanece em busca “do ideal descorporificado do ‘Man of Reason’” (ADAM, 1996, p. 49). Os sistemas de resolução de problemas, jĂĄ nos primeiros modelos de IA, como o “Logic Theorist” de Newell, Simon e Shaw, partem da pressuposição do ideal de razĂŁo masculino, na medida em que:


“Em si mesma, nĂŁo devemos dar como certa a ideia de que as soluçÔes para os problemas sĂŁo coisas a serem buscadas. A ideia de pesquisa Ă© uma parte fundamental da IA simbĂłlica. As tĂ©cnicas de busca sĂŁo baseadas no mĂ©todo cartesiano ideal de dedução, e isso disfarça a necessidade de olhar como outras formas de resolução de problemas baseadas na intuição (vista como uma forma de raciocĂ­nio menos prestigiosa) ou saltos criativos poderiam ser representados onde uma busca nĂŁo Ă© ostensivamente parte do processo” (ADAM, 1996, p. 49).


Adam conclui que o campo da robĂłtica e inteligĂȘncia artificial pode enfrentar questĂ”es de conhecimentos situados e corporificados, na qual “a inteligĂȘncia nĂŁo Ă© vista como a construção do indivĂ­duo de uma representação mental do mundo, mas sim um fenĂŽmeno emergente resultante das interaçÔes do indivĂ­duo com seu ambiente” (ADAM, 1996, p. 51). O projeto “COG” desenvolvido pelo MIT, segundo Adam, avança a hipĂłtese de um conhecimento situado para o campo da InteligĂȘncia Artificial, na medida em que o sistema “foi baseado na hipĂłtese de que a inteligĂȘncia no nĂ­vel humano requer o ganho de experiĂȘncia na interação com humanos, como fazem os bebĂȘs humanos”.


Podem as mulheres serem ciborgues?


Pesquisas recentesque analisam papĂ©is de gĂȘnero e sistemas de InteligĂȘncia Artificial apontam que o conteĂșdo tido enquanto ‘conhecimento’ nesses sistemas, mantĂ©m paradigmas criticados a longa data por correntes da epistemologia feminista: que a suposta neutralidade, objetividade e universalidade daquilo que podemos categorizar enquanto conhecimento esconde critĂ©rios que favorecem uma visĂŁo masculina de mundo, sobre o que se pode conhecer e quem pode conhecer. AlĂ©m disso, os tipos de problemas e de soluçÔes que esses sistemas de IA lidam ainda continuam, em grande medida,respondendo a demandas de um mundo dominado pelo masculino.


A barreira da integração da mulher no mundo das ciĂȘncias e tecnologias, nĂŁo estĂĄ apenas relacionada a sua falta de acesso e participação, embora contribua para os diagnĂłsticos aqui discutidos, mas tambĂ©m estĂĄ na alienação frente aquilo que esses sistemas buscam analisar, otimizar,maximizar e conhecer.Ainda Ă© preciso de ferramentas para que possamos integrar uma espĂ©cie de conhecimento ‘feminino’, ou ainda, experiĂȘncia mĂșltiplas de mundo, naquilo que denominamos saberes, para que, enfim, as mulheres possam se integrar ao imaginĂĄrio dos novos circuitos e dos sistemas.


A imagem do ciborgue,como esse organismo inteligente cibernĂ©tico hĂ­brido de mĂĄquina e organismos vivos, que Ă© uma criatura social real e ao mesmo tempo ficcional, que produz uma noção ambĂ­gua do natural e do construĂ­do, Ă© dita por Haraway enquanto a criatura de um mundo ‘pĂłs-gĂȘnero’, apesar de Haraway nĂŁo gostar do termo ‘pĂłs-gĂȘnero’ em si (HARAWAY, 1991, p. 150), na medida em que transgride as divisĂ”es dicotĂŽmicas que estruturam as concepçÔes de gĂȘnero. Haraway afirma que:


"Um mundo ciborgue pode ser sobre experiĂȘncias sociais e corporais vividas em que as pessoas nĂŁo tĂȘm medo de seu parentesco conjunto com animais e mĂĄquinas, nĂŁo tĂȘm medo de identidades permanentemente parciais e pontos de vista contraditĂłrios” (HARAWAY, 1991, p. 154).


A provocação da pergunta 'Podem mulheres serem ciborgues?’, busca revelar justamente o carĂĄter ainda masculino e pautado no modelo ‘homem da razĂŁo’ de Lloyd no Ăąmbito da robĂłtica e inteligĂȘncia artificial.


A integração do corpo vivido com a tecnologia, no sentido que Paul Preciado descreve enquanto “produçÔes de subjetividades biotecno polĂ­ticas" (2018), certamente abrem espaço para criação imaginativa de formas de existĂȘncia que transgridem as dicotomias iluministas e papĂ©is de gĂȘneros: o uso da pĂ­lula anticoncepcional e do dia-seguinte, retira da mulher o papel determinista reprodutivo, a aplicação de testosterona dĂŁo uma via de acesso Ă  fĂȘmeas aos atributos legitimados e valorizados considerados exclusivamentes masculinos, a acoplação do Dildo serve como uma tecnologia de cooptação de poder em uma sociedade falocĂȘntrica.


Entretanto, ainda assim, parece que nossa transformação em uma realidade ciborgue, como descrita no manifesto de Haraway, ainda carece de uma mudança de paradigma epistemolĂłgico, em qual o nosso conhecimento e imaginação de mundo seja capaz de descrever experiĂȘncias mais mĂșltiplas e diversas, que tenham problemas, demandas e soluçÔes diferentes daquelas prĂ©-estabelecidas pela razĂŁo masculina.


Ferrando, em um questionĂĄrio aplicado a estudantes do Departamento de CibernĂ©tica da Universidade de Reading (Inglaterra), a fim de determinar as percepçÔes e representaçÔes de gĂȘnero no campo da robĂłtica e IA, aponta que a maioria dos participantes da pesquisa, que ultrapassa o n de mil, associaram o ciborgue enquanto masculino ou neutro, mas nenhum relacionou a imagem do ciborgue com o feminino (FERRANDO, 2014, p. 6). Para Ferrando, a tecnologia “nĂŁo Ă© apenas performada, mas primeiro Ă© imaginada” (FERRANDO, 2014, p. 7), Ă© a imaginação que Ă© culturalmente situada que informa aquilo que pretendemos conhecer, assim, “se a genealogia do conhecimento que silenciosamente informa a IA Ă© reduzida ao legado masculino, exclusivismo social e determinismo biolĂłgico podem ser re-inscritos em sua ontologia, com o risco consequente de que diferenças caracterizantes dos robĂŽs possam assimilar prĂĄticas centradas no ser humano e suas discriminaçÔes” (FERRANDO, 2014, p. 7).


“Por essa razĂŁo, o emprego de quadros crĂ­ticos como a Epistemologia Feminista, a Filosofia da Diferença Sexual, a Teoria CrĂ­tica da Raça, os Estudos PĂłs-coloniais, a Teoria Queer, os Estudos da DeficiĂȘncia e a Interseccionalidade, entre outros, Ă© visto como crucial no desenvolvimento de epistemologias pĂłs-humanas informando os campos tecnolĂłgicos . A adoção de tais pontos de vista permitirĂĄ aos humanos gerar uma abordagem enfĂĄtica, impedindo-os de transformar o robĂŽ em seu novo outro simbĂłlico, e de cair no paradigma dualĂ­stico que historicamente caracterizou os relatos hegemĂŽnicos ocidentais, articulados em opostos como: masculino / feminino, branco / preto, humano / mĂĄquina, prĂłprio / outro” (FERRANDO, 2014, p. 16).


Isso nos leva a perceber que a paridade de participação e diversidade em todos os campos de conhecimento nĂŁo Ă© apenas um comprometimento Ă©tico com princĂ­pios igualitĂĄrios, mas Ă© tambĂ©m, a via para que o conteĂșdo do nosso conhecimento e dos problemas que pretendemos resolver com novas tecnologias, abarque um mundo mais prĂłximo do real: aquele situado, parcial, histĂłrico e de pontos de vistas. Esse comprometimento metodolĂłgico feminista, precisaficar claro, nĂŁo implica na abdicação completade noçÔes de objetividade, de realidade e de critĂ©riosespecĂ­ficos para pesquisa cientĂ­fica; mas abre vias para um constante debate de novos paradigmas, novos mundos, e, principalmente, novas formas de conhecer o mundo que nos situa.


ReferĂȘncias


ADAM, Alison. (1996). Constructions of Gender in the History of Artificial Intelligence. IEEE Annals Of the History of Computing, 18(3).


FERRANDO, Francesca. (2014)Is the post-human a post-woman? Cyborgs, robots, artificial intelligence and the futures of gender: a case study. European Journal of Futures Research volume, 2(43). doi: 10.1007/s40309-014-0043-8.


HARAWAY, Donna. (1995) Saberes Localizados: a questĂŁo da ciĂȘncia para o feminismo e o privilĂ©gio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, (5), 07-41.


HARAWAY, Donna. (1991). Simians, Cyborgs, and women: the invention of nature. New York: Routledge.


HARDING, Sandra G. (1986). Whose science? whose knowledge?: thinking from women's lives.New York: Cornell University Press,.


JAGGAR, Alison M. (1989) Love and knowledge: Emotion in feminist epistemology,

Inquiry: An Interdisciplinary Journal of Philosophy, 32:2, 151-176.


LAZREG, Marnia. (1994). Women’s experience and the feminist epistemology. In: LENNON, Kathleen; WHITFORD, Margaret. (ed.) Knowing the difference: feminist perspectives in epistemology. New York: Routledge.


LEAVY, Susan. (2018) Gender Bias in Artificial Intelligence: The Need for Diversity and Gender Theory in Machine Learning. ACM/IEEE 1st International Workshop on Gender Equality in Software Engineering. doi: 10.1145/3195570.3195580.


LLOYD, Genevieve. (1985). The man of reason. Minneapolis: University of Minnesota Press.


 
 
 
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